Carta de Apresentação
Assistência Domiciliar: mitos do cuidado
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo, receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu, esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil[1]”.
Esta pequena história que nos fala sobre vida e morte, também nos explica o nascimento do homem, a existência do espírito e, principalmente, a função ou presença do cuidado em nossa vida. Assim são os mitos. No dicionário: “personagem, fato ou particularidade que, não tendo sido real, simboliza, não obstante uma generalidade que se deve admitir; coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real”. Para Joseph Campbell, estudioso americano de mitologia comparada, os mitos são pistas para explicar as potencialidades da vida humana, a experiência da vida humana. E ele vai mais além: “Os mitos ensinam que você pode se voltar para dentro e começar a captar a mensagem dos símbolos (1995, p. 05).”
Assim, falar de mitos é falar de explicações simbólicas sobre o que temos, vivemos e somos, mas, é também, falar do que não entendemos, do que nos falta explicação, do que carece de sentido, do que nos dói e do que nos “cura”. “Dizem que o que todos nós procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntima, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos” (Campbell[2], 1990, p. 04).
Heróis, deuses, semideuses, comportamentos, emoções, caminhos percorridos e indicados estão presentes na maioria dos mitos. Eles nos explicam, em algumas situações, o inexplicável, nos conduzem a caminhos antes intransitáveis e, nos lembram, o adormecido em nós.
A caixa de Pandora nos fala da curiosidade podendo ser nociva, mas nos apresenta a esperança como resistência; Narciso nos mostra o quanto o autoconhecimento e autovalorização, pode ser um caminho necessário, mas perigoso quando o desconhecimento e a desconsideração quanto aos demais é o que impera. Eros e Thanatos nos apresentam a busca pela vida, pela sobrevivência apesar de tudo e a morte como contraponto; vida e morte; complementariedade e oposição. Kronos e Kairós nos explicam sobre o tempo cronometrado, sobre o relógio que conta as horas, enquanto Kairós representa a oportunidade, o tempo que não pode ser medido por horas ou minutos, apenas sentido e vivido. E Higeia, deusa símbolo que escolhemos para ilustrar nosso evento, é a própria personificação da área na qual trabalhamos, filha de Asclépio, o deus da cura, era considerada a deusa da saúde, da prevenção das doenças e da manutenção da boa saúde.
Apesar da simbologia inerente aos mitos, na vida cotidiana e em linguagem coloquial, eles nos falam sobre o que acreditamos sem fundamentação, tudo o que repetimos, de geração após geração sem pararmos para pensar no quanto de verdadeiro ou falso há no que acreditamos, esperamos ou revivemos. A família é mesmo um núcleo de amor e cuidados? É mesmo o ser-humano um ser de cuidados? As pessoas preferem a verdade nua e crua? A infância é a fase mais feliz da vida? Envelhecer é viver a melhor idade?
São as diferentes perspectivas, simbólicas e reais de, também, diferentes mitos que nos embasarão neste CIAD 2025, cujo tema central é “Assistência Domiciliar: mitos do cuidado”.
Então, te convidamos para adentrar a este labirinto, por meio do qual o fio de Ariadne te guiará. Venha descobrir se os diferentes mitos apresentados têm ressonância naquilo que pensamos, vivemos ou sonhamos ou, se mostram como aquilo no qual acreditamos sem discutir, muito embora a realidade teime em nos revelar exatamente o oposto.
Letícia Andrade
Referências
[1] Versão livre em português, do original em latim de Gaius Julius Hyginus, extraída do livro Saber Cuidar, de Leonardo Boff (1999 p. 46).
[2] O poder do Mito. Joseph Campbell com Bill Moyers. Associação Pala Athena, São Paulo, 1990.