Se na perspectiva de Le Courbusier a casa é uma máquina de morar, no olhar de quem faz assistência domiciliar, torna-se um espaço instrumentalizado para o cuidado. Instrumentalizável, adaptável e possível em concordância com os limites e possibilidades impostos pela família, pelo paciente, pela arquitetura da casa e pelo território de maneira ampla, na certeza de que, espaços internos e externos se complementam e se dependem
Na assistência domiciliar (AD), paciente e família não podem ser descolados da realidade em que vivem; eles são parte da casa e a residência os habita.
Muito há que se fazer em termos de adaptação, visando à melhoria do cuidado e a garantia de uma melhor qualidade de vida. Adaptação essa não restrita ou condicionada às condições financeiras, mas também muito relacionada ao aprendizado de técnicas, utilização adequada de recursos já existentes e criatividade aliada ao empenho por cuidar de ambas as partes, o binômio paciente e família e equipe.
Ensinar faz parte da prática de quem atua em AD. O fazer cotidiano, inserido em um ambiente particular, alia-se ao “ensinar fazendo”. O ambiente domiciliar é um campo fértil de possibilidades e limites; o próprio espaço da casa traz subsídios para uma intervenção efetiva e individualizada. É aí que percebemos, enquanto equipe de atendimento, o quanto somos (des)preparados para adequarmos nossa intervenção a um ambiente não controlado e o quanto somos capazes ou não de atuar fora dos muros hospitalares, que nos protegem tanto quanto nos moldam.
Refletir, aprender e se exercitar in loco foi a proposta da “casa laboratório” criada no CIAD 2018.
A trajetória do CIAD não difere da história de uma residência: só se mantêm todos esses anos, pelas parcerias fundamentais que travou no decorrer do tempo e que lealmente mantêm. Assim como uma casa, tem a proposta de abrigar diferentes experiências, diferentes histórias e perspectivas, com o objetivo de manter a individualidade de cada um dos parceiros enquanto congrega-os em um propósito único: manter viva e atuante a assistência domiciliar, independente dos percalços e momento histórico. Nas palavras de Frank Gehry “a arquitetura fala de seu tempo e lugar, porém anseia por ser atemporal.”
Sendo assim, a casa laboratório contou com vários parceiros para se efetivar, que foram fundamentais na adaptação e materialização de cada cômodo que se tornou propício a realização das atividades propostas.
Levando-se em consideração a perspectiva de Niemeyer que a arquitetura nasce quando uma forma diferente é criada, um banheiro adaptado para o uso independente e/ou seguro de alguém com dificuldades de locomoção é de grande importância para paciente e cuidador, pois traz independência, mesmo relativa para o paciente, e minimiza a sobrecarga de quem cuida. Nos trabalhos sobre pacientes dependentes, as principais preocupações são quanto à dependência para a higiene pessoal e eliminações, que constrangem e traz sofrimento, daí a preocupação de que a independência, total ou parcial, nesse cômodo especifico, seja o grande diferencial. Independência segura para o banho, realização de curativos, descarte de dejetos, higienização de sondas foram os pontos elencados para a demonstração prática.
Aqui tivemos a atuação em diferentes horários de uma equipe interdisciplinar composta por terapeutas ocupacionais, enfermeiros e fisioterapeutas, nutricionistas, cujas intervenções são imprescindíveis para a adaptação segura e eficaz proposta.
Tão íntimo como o banheiro, o dormitório também se constitui em ponto nevrálgico de quem cuida e de quem é cuidado. Seja porque, no que se refere ao paciente, a privacidade e aconchego devem ser mantidos em concomitância à praticidade e técnica para o cuidado, seja porque quanto mais dependente o paciente estiver, mais adaptações e cuidados são necessários.
Se cuidar também for considerado como a arte do possível, podemos tanto entender que o dormitório se abre como um grande leque de possibilidades e necessidades de adaptação para bem cuidar, quanto alterações e adaptações estarão estritamente relacionadas às condições financeiras e à organização da família, aos limites arquitetônicos da moradia, e à disponibilidade das equipes de adaptar suas intervenções e orientações a uma realidade específica e particular.
Cuidar de um paciente grave e dependente de tecnologia foi a proposta para esse cômodo, já que traqueostomia, aspiração, mudança de decúbito, cuidados com os aparelhos, medicamentos e insumos, bem como realização de curativos costumam trazer bastante estresse para quem precisa aprender e dificuldades específicas para quem ensina. Importante frisar que aqui nos referimos ao que um leigo pode aprender e realizar desses cuidados.
Assim a realização das oficinas visando ao excelente cuidado desse paciente se tornou possível pela participação de uma equipe composta por fisioterapeutas, odontólogos, enfermeiros e nutricionistas que administraram as atividades propostas.
A cozinha, para muitos, é considerada o coração da casa, é onde acontecem as melhores conversas para alguns e para outros é onde todos se reúnem em volta de um prato especial ou algo trivial, sendo a reunião em si o mais importante. Em nossa calorosa cultura, comer é um ato social e a comida, uma construção também social, repleta de significados, simbologias e história. Em uma residência onde alguém é cuidado, não deixa de ser diferente. Fazer a comida e alimentar o outro é parte imprescindível do tratamento. Seja uma alimentação comum ou uma dieta específica, tudo pode ser adaptado para que alimentar e ser alimentado seja mantido como um ato de prazer e cuidado.
Parafraseando Paulo Mendes Rocha, se na arquitetura o ideal não existe, o que existe mesmo são inúmeras possibilidades de se realizar uma aproximação, a alimentação assim se efetiva, já que muito dependerá do paladar do paciente, dos recursos da família, da técnica de quem ensina, do tempo de quem prepara e do envolvimento deste no cuidado.
Avaliação de disfagia e lesões orais fizeram parte dessa abordagem ampla no lugar mais frequentado de uma casa de quem cuida; dessa forma, também uma equipe ampla foi composta para a efetivação e demonstração das orientações: nutricionista, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, odontóloga, farmacêutica, fonoaudióloga estiveram presentes nas intervenções.
A sala, espaço social por natureza, englobou as orientações específicas de assistentes sociais e psicólogos, complementadas por intervenções médicas e de fisioterapia, com o auxílio fundamental das empresas parceiras no fornecimento dos equipamentos. Utilização e obtenção de oxigênio domiciliar (cilindro ou concentrador), tarifa social, processos de curatela e demais direitos, avaliação psicológica dos familiares foram os pontos-chave reconhecidos como fundamentais de serem abordados. Abordagens essas imprescindíveis para que o cuidado seja efetivado com qualidade para paciente e familiar.
Aprender o que orientar, como orientar e em que momento, é o grande segredo de quem trabalha em qualquer área da saúde e mais ainda, tendo o domicílio como subsidiário para o conhecimento e reconhecimento de uma realidade tão particular que é a do binômio paciente e família em seu próprio ambiente. Condição econômica e financeira, condições de moradia, lugar social de paciente e família, território, englobando a comunidade e sua construção histórica, fase de doença e cuidado, composição familiar, tudo se torna aparente ou desvelável para quem atua na residência do outro.
Se por um lado tal descortinamento traz os subsídios necessários para uma intervenção o mais próxima possível da realidade familiar, e por isso mais facilmente, ao menos teoricamente, aplicável no cotidiano, por outro traz questionamentos inegáveis: se o cuidado ali proposto será viável; os limites para o aprendizado do cuidador familiar para bem cuidar; o espaço disponível é propício ou não para as intervenções; equipes preparadas ou não para reconhecer o domicílio como espaço adequado de cuidados etc.
É no descortinamento contínuo de uma nova realidade, do domicílio e das equipes de saúde, que a assistência domiciliar vem se fortalecendo como a alternativa mais adequada para uma parcela da população que só tem aumentado frente ao envelhecimento populacional com dependência e ao maior número de doenças incapacitantes e progressivas.
Essa é a história atual da AD, mutável e limitada em relação ao tempo e espaço, mas podendo chegar o mais próximo possível do ideal em cada atendimento por meio das práticas diferenciadas de todos os seus atores, como nos diz Niemeyer: “Cada um vem, escreve a sua história e vai embora. A vida é um sopro”.